A BIBLIOTECA É UM SILÉNCIO CHEIO DE VOZES

Os livros das bibliotecas: «passaram por mãos de leitores anónimos romances cor-de-rosa que aqueceram corações solitários, páginas febrilmente desfeitas que fizeram viajar e sonhar, ensaios que alimentaram o espírito de professores e investigadores, livros que serviram para rezar e cantar.» Henrique Barreto Nunes é director da Biblioteca Pública de Braga e a ele se devem muitos textos e ideias sobre as novas bibliotecas portuguesas.

Tenho uma profissão privilegiada, fascinante. Sou bibliotecário, porque gosto de livros. De os ler, de os ver, de os afagar - de os dar a ler. É uma paixão e, como tal, inexplicável, mas que posso atear e consumir sempre que quero, em qualquer sítio em que existam livros mas, sobretudo, na Biblioteca Pública de Braga.

A biblioteca é um silêncio cheio de vozes.

Percorrendo lentamente os seus depósitos, os seus corredores e salões, tenho, todos os dias, um contacto íntimo com as grandes obras do património literário da Humanidade – dos poetas e dos romancistas, dos historiadores e dos filósofos, dos juristas, dos teólogos, dos cientistas.

Desde os incunábulos, que seguro com mil cuidados, até às edições mais recentes da criação contemporânea, passando pelos clássicos e humanistas, pelos oradores sacros e pelos historiadores, pelos intelectuais e políticos do século XIX, pelos escritores de sempre, é uma história interminável que se desenrola perante os meus olhos deslumbrados, que todos podem partilhar quando vão à biblioteca.

São livros que vieram de mosteiros e de catedrais, de seminários e de colégios, de gabinetes de leitura ou das casas de grandes figuras locais, que não quiseram que as suas livrarias se dispersassem e as encaminharam para a biblioteca.

É o Missal Bracarense usado por D. Fr. Bartolomeu dos Mártires, que o autografou, a Encyclopédie de Diderot e D'Alembert, com a marca de posse do Convento dos Congregados, a primeira edição do Só, com uma dedicatória de António Nobre, os livros que foram lidos e anotados por Manuel Monteiro, Carrington da Costa, ou Vítor de Sá.

São milhares de livros que passaram por mãos de leitores anónimos, romances cor-de-rosa que aqueceram corações solitários, páginas febrilmente desfeitas das aventuras de Salgari ou das utopias de Júlio Verne que fizeram viajar e sonhar, ensaios que alimentaram o espírito de professores e investigadores, livros que serviram para rezar e cantar.

E são também os livros virgens, intactos, de cujos encantos nunca ninguém desfrutou, que aguardam, ansiosos o seu primeiro sedutor. Ou uma pilha de alguns romances eróticos que, noutros tempos, mãos zelosas ocultaram conscienciosamente por detrás de edições do século XVIII, na secção de religiões...

Livros que sobreviveram a guerras e a incêndios, à humidade, a roedores e a insectos, a pilhagens, às incorporações revolucionárias, à censura que os mandava retirar da leitura ou mesmo destruir.

Livros que passaram por mãos de frades piedosos ou de poderosos arcebispos, de honrados políticos ou de operosos intelectuais, pelas mãos de leitores atentos e vorazes, pelas mãos apressadas de estudantes ou descuidadas mas sôfregas de crianças.

São testemunhos imperecíveis de séculos de História e de sonhos da Humanidade - das suas descobertas, do seu espírito criativo, ou da sua revolta. São objectos de cultura e de prazer, uma referência insubstituível da nossa identidade, uma presença necessária no quotidiano de todos nós.

E é, enfim, a angústia constante, o desespero de ver tantos livros ao meu alcance, sabendo que nunca terei vida(s) para os viver.

Henrique Barreto Nunes


LER N.º 26, 1994

Sem comentários:

Enviar um comentário